A recessão contribuiu para dar outra cara ao verão: a cerveja, segmento que costumava anunciar maciçamente nesta época do ano, em todo o Brasil, transformou seus investimentos. Há pressão para melhorar a eficiência na produção, na comercialização, no marketing. Em outros tempos, desde o início da estação mais quente do ano, tinha início a chamada “batalha das cervejas”, com a mídia repleta de ações, principalmente das líderes do polpudo segmento Pilsen, até hoje dominado pelas marcas da Ambev – Skol, Brahma e Antarctica.
Para se ter uma ideia, dados do Kantar Ibope Media mostram que, em 2014, o setor ocupava entre todas as categorias de consumo a sexta posição em investimento publicitário, com um total de R$ 3.002.649,00. Já em 2015, o setor pulou para o oitavo lugar. A verba total caiu para R$ 2.541.837,00, mesmo assim manteve em 2% a participação naquele período.
E não foi apenas a recessão (e a consequente queda no consumo e nas receitas) que mudou o quadro. Consolidam-se tendências – que não são novas – no consumo do produto e um novo jeito de fazer marketing de cervejas no país, seguindo rumos mundiais. Um jeito que, dizem os especialistas, é mais assertivo e puxado pelas mudanças nos hábitos de consumo e preferências do consumidor, e também pela diversificação dos canais para falar com eles. As mudanças passam pela redução dos investimentos em publicidade televisiva e pelo fim da aposta nos camarotes patrocinados pelas marcas de cerveja das grandes cervejarias na passarela do samba do Rio de Janeiro, por exemplo. O mercado mudou, com os territórios de cada marca melhor definidos, e cada marca afina seu foco em ações de relacionamento, promoções e campanhas que as aproximam de seus públicos.
Uma das tendências mais emblemáticas no segmento de cervejas é, sem dúvida, o da “premiumrização” – que alguns também chamam de “gourmetização” – que atinge em cheio o mundo do consumo: chegou também ao café, à água, aos chocolates, hambúrgueres, sorvetes, balas, pipocas e até barbearias, entre outras categorias de produtos. O consumidor se sofisticou, ficou mais exigente, demanda maior qualidade e diversificação. O que era commodity virou símbolo de status.
No caso das cervejas, o mercado se diversificou de tal maneira que as grandes cervejarias desandaram a comprar marcas menores e têm, hoje, no segmento premium, a sua maior aposta. Há mais de 500 cervejarias, mais de 700 marcas e mais de 3 mil rótulos de cerveja no país. “Os consumidores estão mais conscientes do que bebem e pedem cada vez mais qualidade. E não há retorno quando o consumidor descobre que um produto não é bom”, comenta Iron Mendes, CEO da Maniacs Brewing Co., marca paranaense de artesanais.
Ele afirma ainda que a recessão não chegou ao setor das artesanais brasileiras e importadas. É um segmento que cresce diariamente no Brasil e no mundo. “As cervejas artesanais caminham bem no Brasil, nossos cervejeiros são muito criativos e há cada vez mais tecnologia acessível para as pequenas cervejarias. Na outra ponta, os consumidores pedem novidades, cervejas com mais personalidade e estão dispostos a pagar mais por essa qualidade. Ainda há uma diferença de preços grande entre as cervejas de massa e as artesanais, muito devido aos grandes incentivos governamentais recebidos pelas grandes empresas, mas as cervejas artesanais estão avançando consistentemente”.
Hoje, com o avanço da tecnologia, qualquer restaurante pode lançar a própria marca com sucesso, atendendo a um público sofisticado. O segmento premium – cervejas produzidas com ingredientes mais nobres que as mais populares, porém misturados a “menos nobres” para baratear os custos de produção – representa cerca de 8% do mercado brasileiro atual, enquanto o das artesanais – produzidas somente com ingredientes nobres – ainda não chega a 1%. Mas é preciso considerar que menos de 1% representa 140 milhões de litros anuais.
MUDANÇA
José Raimundo Padilha é um sommelier de cerveja que trabalhou 30 anos como criativo em publicidade e se apaixonou pelo mercado das artesanais. Ele vem acompanhando de perto o crescimento das marcas premium e artesanais e também as mudanças no marketing das cervejas mais populares. Ele cita um comercial emblemático da gigante Budweiser veiculado Super Bowl de 2016, que representa um pouco do desconforto causado pelo crescimento das cervejas especiais em todo o mundo: o filme ironizava as cervejas artesanais e ridicularizava como “hipsters” as pessoas que gostam de cervejas mais sofisticadas.
Na ocasião, Budweiser se posicionou orgulhosamente como uma “macro beer” – enquanto a própria Anheuser-Busch InBev vem adquirindo marcas de cervejas premium e artesanais, como a Elysian Beer – e foi duramente criticada pelo segmento de cervejas “craft”, como é chamado nos Estados Unidos. A marca tentou se desculpar, sem muito sucesso. Fato é que a Budweiser – como outras grandes marcas mais populares – enfrentou uma desaceleração na curva de crescimento nos últimos anos, antes sempre fortemente ascendente. “Há uma mistura de fatores que se combinam: a recessão, claro, mas há uma crise na comunicação como um todo, o que pode explicar o uso de novas plataformas nas estratégias. Além disso, o bebedor de cerveja está mais maduro, o que tem levado até marcas de cerveja mais populares, como a Brahma, a falarem de qualidade de ingredientes e processos de produção. O amadurecimento leva a uma mudança de hábito e à consequente transformação na mensagem das marcas, que fogem dos estereótipos de outros tempos”, diz.
JOGADA
Hoje, diversidade é o nome do jogo: como a Anheuser-Busch InBev, todas as grandes cervejarias passaram a contar com um portfólio de cervejas populares, premium e artesanais, jogando em todos os times, e com equipes diferentes para cada segmento, pois cada um exige uma expertise específica em campo. O segmento premium tende a ser o mais rentável e aparece como a grande aposta da Ambev, por exemplo, em seus balanços recentes. O que explica isso é que a cerveja premium – no qual estão inseridas Stella Artois, Heineken, Serra Malte, Cerpa e Teresópolis – tem preços cerca de 20% superiores à “mainstream.”
Gláucia Gouveia, diretora de marketing da Brasil Kirin, afirma que nos últimos três anos foi notável o desenvolvimento do mercado de cervejas especiais no Brasil, embora o consumo da categoria mainstream continue concentrando a maior parte do volume. “Poderemos notar um consumo mais qualitativo das cervejas, influenciado pelo crescimento das especiais e pela percepção do consumidor dos benefícios do consumo responsável. Temos notado nos últimos tempos uma preferência tanto pelo consumo de cervejas especiais mais leves, como Pilsen e Weiss, quanto por outras que inovam em sabores e misturas, como é o caso de Baden Baden 5 Grãos ou a Witbier, que recebeu em 2015 o prêmio de melhor cerveja do mundo, no International Beer Award”, comenta.
Verão da recessão
Paulo Petroni, diretor-executivo da CervBrasil, que representa os fabricantes de cerveja no país, fala que os indicadores de produção de novembro passado demonstram dificuldade para a retomada de crescimento econômico. Em 2016, apenas o mês de setembro apresentou crescimento em relação ao mesmo mês do ano anterior, ainda que mínimo, na segunda casa decimal. “Para um setor que abrange mais de 50 complexos fabris com tecnologia padrão mundial e gera mais de 3 milhões de empregos através da sua extensa cadeia de valor presente em todos municípios e vilarejos do nosso país, o senso de urgência está muito presente.
Afinal de contas, a cada minuto que se passa, são produzidos e distribuídos cerca de 30 mil litros dos nossos produtos para todo o Brasil. A recessão econômica logicamente atinge todos os setores, mas o setor cervejeiro continua investindo sobretudo em inovação e em novas embalagens, para atender a uma nova realidade do consumidor brasileiro, atualmente mais focada na embalagem individual, de menor custo, devido à diminuição de sua renda disponível”, diz.
Segundo o executivo, o “aperto” no orçamento das famílias brasileiras poupou a alegria de celebrar os melhores momentos da vida apreciando sua cerveja. As dificuldades econômicas permanecem, e o cenário se mantém com elevado nível de incertezas, baixa confiança e acelerada redução da renda disponível do consumidor. A permanência, ainda em patamares elevados, dos índices gerais de inflação e do câmbio se soma aos novos aumentos tributários ocorridos em vários estados brasileiros em 2016. “Esses fatores pressionam muito os custos das empresas, tornando-se muitas vezes insuportáveis à sustentabilidade dos negócios. Consequentemente, as eventuais decisões das empresas de repasse aos preços finais impactam fortemente os volumes comercializados”.
Eliana Cassandre, gerente de propaganda do grupo Petrópolis (dona das marcas de cerveja Itaipava, Crystal, Lokal, Miller, Black Princess, Petra e Weltenburger) fala que, de uma forma geral, a expectativa do mercado é de estagnação não só para o verão, mas para o ano, entretanto que a média de investimento em publicidade se manteve para enfrentar a cada vez mais acirrada entrada de players globais e o crescimento das cervejas especiais. “O perfil de consumo também tem mudado. Em um cenário de crise, o consumidor busca o melhor custo x benefício, comprando mais cerveja em embalagens retornáveis e bebendo mais em domicílio que em bares e restaurantes. O autosserviço ganhou ainda mais importância e as marcas que perceberam isso saíram ganhando: Itaipava foi, em 2015 e 2016, a que mais cresceu em vendas neste tipo de canal”, comenta Eliana.
Reposicionamento
Quem viveu os tempos em que cerveja era sinônimo de mulher gostosa e consumida essencialmente por homens menos dotados do ponto de vista intelectual, percebe mais fortemente as transformações. Foi principalmente nos anos 1990 que ocorreu a famosa “guerra das cervejas”, uma briga de preços e de quem tinha o bordão mais potente ou a garota-propaganda mais famosa e bonitona. O crescimento das marcas que disputavam as primeiras posições era vertiginoso, e cada ponto de share valia milhões. Hoje, algumas marcas mais populares ainda contam com a associação a mulheres na comunicação, mas a prática é mais rara. Gláucia Gouveia, da Brasil Kirin, afirma que esse é um movimento natural, tanto da indústria como dos órgãos reguladores, como o Conar, que desempenha um papel muito importante nessa questão. “No caso da Brasil Kirin, a mudança no perfil de propaganda (em que a mulher é vista como objeto) se deu por uma preocupação da empresa com a questão de respeito ao consumidor, independentemente do gênero.
Atualmente a mulher tem um poder aquisitivo que se equipara ao dos homens, o que as torna uma importante parcela de mercado, desta forma é natural que a publicidade trabalhe cada vez mais em função delas e não por meio delas”, comenta. Para a maioria das marcas a comunicação é pensada para ir muito além da geração de lembrança e o desafio de ganhar escala, máximo de exposição de marca e impacto foi substituído por outro, muito mais valioso: valor de marca.
Rodrigo Maroni, diretor de planejamento da Africa, afirma que uma das explicações para a mudança na comunicação é que os objetivos das marcas se sofisticaram. “É preciso criar valor de marca junto a um consumidor que diversificou suas escolhas e exige qualidade. Um bom exemplo é a campanha de Brahma que lançamos em 2016, mostrando ingredientes e processo produtivo”. A Brahma começou a falar de ingredientes a partir de janeiro de 2016, mostrando que as conexões emocionais com o consumidor e a fuga de clichês não combinam com o novo consumidor, mais antenado, mais aberto. Isso não é novidade, e a Skol é uma das que melhor representam a tendência. “A combinação de corpos sarados e piadas superficiais não faz mais sentido”, diz Ricardo Schrappe, da Fuego, que atende a Maniacs Brewind Co.
Fonte: Datamark – 31/01/2017