Por Marília Duque
Meu pai costuma dizer que a gente poderia quebrar a tábua dos dez mandamentos e seguir com um único princípio: “não faça com o outro o que não gostaria que fizessem com você”. No fundo, ele está falando da tal da empatia, da disposição de se colocar no lugar do outro na hora de falar, na hora de ouvir e na hora de replicar. De certa forma, para haver comunicação é preciso esse encontro, essa disposição. Porque comunicação não é circulação de informação. Comunicação é produção de sentido, num processo de acerto, erro e ajuste.
Mas afinal, por que as redes sociais fazem tudo parecer uma mistura de jogo de xadrez com campo minado? Por três motivos que são propriedades intrínsecas a essas plataformas: escalabilidade, persistência e buscabilidade. Trocando em miúdos: o conteúdo se espalha rápido e sem controle; o conteúdo fica gravado (ou pela plataforma ou por aquela captura de tela que pega tanta gente de surpresa); e o conteúdo pode ser facilmente encontrado por meio das ferramentas de busca – o que faz com que certas notícias, amizades, vinculações ou deslizes voltem do além, circulando novamente pela rede e de forma descontextualizada. Ou seja, aquele ruído da comunicação acontece em um megafone cujos ecos podem ser armazenados como
Marília Duque é publicitária e doutoranda em comunicação e práticas de consumoprovas. Então, não adianta a empresa ir lá e apagar o post simplesmente. É preciso abrir o diálogo e entender que uma crítica não é necessariamente o estopim de uma crise que coloque a marca na berlinda.
Trabalhando há dois anos à frente do community management de uma das marcas mais queridas da indústria alimentícia brasileira, eu afirmo sem dó: crise é ver um fã da sua marca ir embora e nunca mais voltar. E por que isso é realmente grave? Porque a relação que a comunicação da marca suou tanto para construir diz respeito a um consumo que é tudo, menos o consumo de um produto em si mesmo. Ao contrário, os consumos funcionam como marcadores da nossa própria história, produzem e reavivam memórias e afetos, e não é uma “DR” qualquer de réplica e tréplica que pode colocar tudo a perder. Por isso, os chamados gerenciadores de comunidades – que são as pessoas que estão lá na linha de frente interagindo com os comentários nas redes sociais – precisam investir tempo e energia, e não abandonar o campo a cada novo turno de fala.
E se ruídos são sempre uma possibilidade, é bom que eles tenham algumas cartas na manga: 1) autenticidade: estudos apontam que muito mais do que uma coisa única ou criativa, a percepção de autenticidade vem mudando e está mais relacionada à constância no discurso. Então, tenha bem claro qual é o tom com o qual a sua marca se comunica, quais são seus valores, no que ela acredita; 2) humildade: se a marca recebeu uma crítica e ela é pertinente, posicione-se, acolha a crítica publicamente e cresça com ela; 3) agilidade: se as coisas ganham escalabilidade em rede, quanto mais cedo você se posicionar, melhor. Fazer reuniões para decidir como administrar um enrosco na rede só dará tempo para a coisa se espalhar e se tornar visível para mais pessoas.
Por isso os gerenciadores de comunidades devem estar afinados com o discurso da marca bem antes de ensaiarem qualquer interação com seu público. Informação relevante, tom e timing – é assim que a gente desarma uma bomba-relógio. Veja o caso do aeroporto. Você fala para as pessoas que o voo está atrasado e elas surtam. Porque ficam no escuro. Aí você fala para voltarem em duas horas ao portão número tal. Ou elas sentam no chão e tocam um violão, ou sentam no bar para tomar uma cerveja. Tudo resolvido. O mesmo acontece nas redes sociais. Recebeu uma pergunta? Responda. Recebeu uma reclamação? Responda. Mas responda direitinho, de preferência depois de entender o que o cliente quis dizer.
Tive uma segunda experiência no gerenciamento da comunidade de uma página em que 80% dos fãs afirmavam que o produto não era mais o mesmo. A marca insistia em dizer que tudo permanecia igual, mesmo tendo divulgado mudanças em sua fórmula. Isso é conversa de maluco. Ou melhor, nem é uma conversa. Imagine meio milhão de pessoas falando “isso aqui é um quadrado”. A marca insiste “não, isso aqui é um círculo”. Aí as pessoas apontam “mas veja bem, tem quatro quinas aqui”. E a marca conclui “obrigado por compartilhar sua opinião com a gente… mas isso aqui é um círculo”. Entender de fato o que o cliente está dizendo é primordial, ainda mais se considerarmos, por exemplo, que o Inbox/Messenger do Facebook tem centralizado grande número dos contatos antes dirigidos ao SAC.
Isso tudo para dizer que antes a publicidade só falava. Agora ela precisa ouvir. E as marcas precisam dialogar. Então, não adianta investir toda a verba em produção de conteúdo e achar que qualquer pessoa pode ir lá conversar em nome da marca. É no gerenciamento das comunidades que a mágica acontece. Outro dia, em uma aula da pós sobre estratégias de redes sociais, uma aluna me perguntou: “Mas essas pessoas são idiotas? Elas acham mesmo que uma marca fala?”. E o que eu penso é que, se a marca não está disposta a encarnar seu lugar de fala e, também na conversa diária nas redes, reafirmar tudo aquilo que ela representa no discurso, é melhor ela não ocupar um espaço que se baseia na sociabilidade. E aqui vale a máxima: “Se não sabe brincar, não desça pro play”. Vai ocupar uma plataforma de redes sociais? Então prepare-se para socializar. Não fale como se fosse marca. Fale sendo a marca e você verá aquelas memórias e afetos pulsarem.
Mas isso diz respeito à interação. E a produção de conteúdo, como fica? A análise do discurso, que é uma teoria que trata dos ditos, dos não ditos e dos implícitos, traz uma ferramenta importante para evitar deslizes. A tal da historicidade. Ou seja, bem antes de colocar uma campanha na rua, não vá só pesquisar o que a concorrência está falando. Certifique-se de pesquisar também sobre as memórias e os contextos do discurso de que a marca pretende se apropriar (para a análise de discurso, todo discurso retoma ou dialoga com outros discursos que lhe são anteriores). Isso ajuda a evitar que uma frase importante de resistência de minorias seja apropriada para vender papel higiênico, por exemplo. E isso ninguém perdoa. Não mais. Porque tem coisas que se tornaram inaceitáveis. Sim, diversidade e inclusão são as palavras de ordem. E elas são primas-irmãs da empatia.
Dois últimos pontos: o cliente sempre tem razão? Não. O ambiente de redes sociais traz outros regimes, que se misturam numa combinação bombástica. De um lado, a visibilidade e o potencial para cavar uns décimos de segundo de fama. De outro, uma sensação falsa de anonimato que dá às pessoas a blindagem para que elas sejam intolerantes, agressivas e, às vezes, oportunistas e irresponsáveis. Mas, você sabe, quando acontece um mal-entendido, quem responde com grosseria sempre perde a razão. Então, treinar o pessoal da linha de frente é primordial. O cliente pode apelar. A marca não. E por último, algo positivo: as redes sociais também trazem inputs valiosos que antes custavam milhões aos clientes em pesquisas. Mas para aprender com eles, não tem jeito. É preciso deixar de lado a autoridade de quem antes definia sozinho qual seria a mensagem, educar os ouvidos e não ter medo de conversa.
Fonte: Época Negócios - 10/04/2018