Além de descreverem 57 compostos fenólicos e 15 nitrogenados presentes na bebida, os pesquisadores demonstraram que essas substâncias podem ser usadas para distinguir estilos de cerveja
Ao falar sobre a importância de seu objeto de pesquisa, o professor do Instituto de Ciência e Tecnologia dos Alimentos da UFRGS Jeverson Frazzon é enfático: “A cerveja acompanha o desenvolvimento da sociedade”. Não há consenso de quando foi que se começou a consumir o resultado da fermentação da cevada. Sabe-se, contudo, que a bebida foi parte importante da vida social e de cerimônias culturais e religiosas de diversos povos antigos, incluindo sumérios e egípcios. Sua descoberta provavelmente ocorreu por acidente, com sua origem podendo remeter a até 10 mil anos atrás. “Existem vários relatos de que esse tipo de vida que nós temos, agrupados em sociedade, tem aspectos relacionados à cerveja”, comenta o professor. Não é por acaso que essa é a bebida alcoólica mais consumida no mundo. Apesar dessa longa história, entretanto, pouco se conhece ainda sobre suas propriedades e seus benefícios.
Você já deve ter ouvido falar de que o vinho faz bem para o coração, de que ele é cheio de antioxidantes e compostos bioativos (substâncias não essenciais para o funcionamento do corpo, mas que trazem uma série de benefícios para a saúde) ou de que uma taça da bebida por dia faz viver mais e melhor. “Têm realmente muitos estudos sobre o vinho. Mas o que a gente sabe da cerveja?”, questiona Frazzon. Conforme ele ressalta, é provável que a cerveja faça bem para a saúde. E não só em relação a seu aspecto social, mas também por seus atributos nutricionais. “Assim como o vinho já tinha sido explorado, a nossa ideia era buscar entender a presença de compostos fenólicos e nitrogenados na cerveja. Aí entra a parte química da questão. O que tem nesse produto, entre esses componentes nitrogenados e fenólicos, com capacidades bioativas, que podem melhorar condições cardiovasculares ou de várias outras doenças que nos afligem, inclusive a diabetes?” Alguns desses compostos benéficos já haviam sido descritos em estudos anteriores, mas com o desenvolvimento de uma metodologia própria, os pesquisadores da UFRGS puderam identificar novas substâncias, além de, pela primeira vez na literatura científica, demonstrarem que é possível distinguir diferentes tipos de cerveja a partir da presença ou da ausência desses compostos.
A análise foi baseada em 81 garrafas de cervejas artesanais de três cervejarias de Porto Alegre, que doaram a maior parte das amostras. Foram 27 de cada empresa, sendo três lotes diferentes para cada um dos três estilos examinados: IPA, Lager e Weiss. Desenvolvido como parte do mestrado da farmacêutica Kamila Cheiran, orientada por Frazzon, o trabalho envolveu uma equipe multidisciplinar, que incluiu alunos de graduação e pós-graduação e professores de áreas tão variadas como microbiologia, química e matemática. Os resultados foram publicados na revista científica Food Chemistry.
Produzidas em menor escala e com maior atenção aos ingredientes utilizados, as cervejas artesanais demandam períodos mais longos de fermentação e maturação. O foco é a qualidade e a diferenciação do produto, enquanto as cervejas industrializadas têm por objetivo a produção em grande escala com grandes maquinários. Conforme explica Frazzon, parte da motivação para trabalhar com as cervejas artesanais vem do fato de que seus aromas e sabores mais complexos são indicativos da presença de compostos bioativos em maior quantidade. Os pesquisadores também buscaram verificar variações entre os lotes de uma mesma cervejaria.
“Nossa ideia foi averiguar diferentes tipos de cervejas em lotes diferentes, em períodos diferentes de fabricação. A primeira análise que a gente fez foi da parte mais química”, conta o professor. Foram avaliados o amargor, a cor e o teor alcoólico das bebidas, e observou-se muita variação, mesmo entre lotes do mesmo estilo e da mesma marca. “Isso é importante em vários aspectos. Se você diz que a cerveja tem 5% de álcool, por exemplo, isso é uma coisa muito rígida, que tem que ser acompanhada. Agora, se o processo fermentativo naquela semana não funcionou direito ou se tinha mais ou menos açúcar no material, pode variar a concentração de álcool. O consumidor não receberá os 5%; ele poderá receber tanto 7% como 4%. Isso realmente é sério, pode ter várias implicações”, ressalta. Talvez você já tenha tido aquela sensação de que a cerveja que você tomou na semana passada tinha um gosto diferente da de hoje. Afinal, mesmo pequenas mudanças nos ingredientes utilizados podem acarretar variações consideráveis na qualidade do produto final. É essencial, enfatiza o professor, que o fabricante se atente a essas questões, uma vez que o consumidor precisa receber o produto que consta no rótulo.
Benefícios para a saúde
Em um segundo momento, os pesquisadores buscaram identificar a presença de substâncias benéficas para a saúde na bebida. Foram descritos 15 compostos nitrogenados e 57 compostos fenólicos, sendo que 12 destes últimos foram encontrados em cervejas pela primeira vez. Os compostos fenólicos estão ligados a características sensoriais, dando amargor e adstringência ao sabor, e são conhecidos por suas propriedades antioxidantes com efeitos positivos para a saúde, como a redução do risco de doenças cardiovasculares. Já os nitrogenados, além de poderem estar relacionados a características sensoriais, possuem relações benéficas com diversas enfermidades, como diabetes, neurotraumas e desordens degenerativas e cognitivas.
Os tipos e as concentrações de compostos fenólicos e nitrogenados são diretamente influenciados pela composição das matérias-primas utilizadas na produção. O lúpulo, por exemplo, é repleto de compostos fenólicos, enquanto a cevada é rica em compostos nitrogenados. “Para ser um sommelier e entender direitinho a presença dos compostos, tem que ter bastante desenvolvimento. Mas é perceptível. As pessoas que têm essa habilidade sommelier conseguem detectar a presença de certos compostos da cerveja, e por isso ela recebe uma classificação”, explica.
A IPA, por exemplo, tem a marca do lúpulo bem definida. “É uma cerveja forte, de corpo, com personalidade. Porque muitas vezes são adicionados dois, três tipos de lúpulo, em momentos diferentes da fermentação. Isso dá todo um sabor característico. E dá uma sensação boa ao se tomar, parece realmente que a gente está cheia de antioxidantes”, enfatiza o pesquisador. “Poder trazer essa informação para a sociedade é superimportante para que enxergue os benefícios da cerveja. Não é à toa que ela está há tantos anos inserida entre nós, porque algum benefício ela tinha que nos trazer. E realmente está comprovado que ela nos traz benefícios a partir da presença desses compostos antioxidantes e bioativos”, complementa.
Para diferentes estilos, diferentes compostos
Os estilos de cerveja foram posicionados em gráficos de acordo com a presença e a quantidade de compostos fenólicos e nitrogenados – Imagem: divulgação
Outra contribuição importante do trabalho foi a distinção dos estilos de cerveja com base na presença ou na ausência de determinados compostos fenólicos e nitrogenados. A partir de fórmulas matemáticas, os cientistas identificaram o percentual de compostos encontrado em cada um dos três estilos pesquisados e puderam posicioná-los em gráficos que mostram claramente as diferenças na composição de cada um.
Isso é especialmente importante, explica Frazzon, para a classificação correta das bebidas e para evitar processos de falsificação. “Se tu tens um padrão no estilo, ele tem que ser seguido. Foi um passo que demos, não quer dizer que esse método já possa ser aplicado, porque ele não é muito fácil de ser reproduzido. Mas, obviamente, se houver interesse, poderá ser aplicado futuramente”, ressalta.
Artigo científico
CHEIRAN, Kamila P. et al. Simultaneous identification of low-molecular weight phenolic and nitrogen compounds in craft beers by HPLC-ESI-MS/MS. Food Chemistry, 2019.
Fonte: UFRGS – 15/03/2019