Por Flávio Picchi
Todos nós sofremos, por vezes, decepções com empresas, por conta de produtos ou serviços consumidos que consideramos não terem sido adequados.
Há, no entanto, um fenômeno recente, fruto da revolução digital, que tem muito a ver com a boa ou com a má gestão: empresas que só resolvem, de verdade, os problemas dos clientes quando são expostas, de forma negativa, nas mídias sociais. São aquelas companhias (e são muitas) que só “se mexem” quando o cliente, insatisfeito, põe a boca no trombone, por exemplo, no Reclame Aqui ou no Procon.
Flávio Picchi é presidente do Lean Institute Brasil e Prof. Dr. da Unicamp
Trata-se, evidentemente, de uma enorme falha de gestão, o inverso da gestão eficiente, da gestão lean. O foco principal de uma gestão que se preze deveria ser resolver problemas antes que eles cheguem ao cliente. Esse é o foco da mentalidade lean, a melhoria contínua, centrada na eliminação cotidiana de desperdícios e na agregação de valor. Mas talvez pior ainda do que isso é quando a empresa, deliberadamente, monta uma estrutura para “se esquivar” de resolver os problemas, quando o próprio cliente os mostra.
Recentemente, passei por uma experiência desse tipo, que me fez refletir. Mandei um email para uma fabricante de um relógio que comprei, ainda na garantia, que repentinamente, sem razão alguma, nenhum impacto, apresentou uma trinca em seu mostrador.
Logo de cara, o fabricante respondeu que esse tipo de problema não poderia ser coberto pela garantia. Pedi um orçamento para consertar a peça. Responderam-me que eu teria de enviar o produto à empresa e ainda depositar, numa conta, R$ 150,00 só para fazer o orçamento. Caso eu não o aprovasse, perderia o dinheiro.
Claro que fiquei indignado e respondi, ainda por email, que considerava essa “taxa” um abuso. Que queria fazer um orçamento para saber se valia a pena consertar, mas não achava justo o risco de perder R$ 150,00. E ameacei contar toda essa história ao Reclame Aqui.
Surpresa! A empresa, então, respondeu que eu poderia, sim, obter o orçamento sem precisar pagar a taxa!
Estranho, não é? Seria essa taxa uma daquelas estratégias “vai que cola”? Ou seja, se o cliente não reclamar, a gente garante mais uma receitazinha… mas se ele ficar indignado, a gente cancela a taxa? Pois mandei o relógio para fazer o orçamento.
Depois de uns dias, sabe o que me responderam? Que como a peça ainda estava na garantia, iriam, finalmente, me enviar um novo relógio sem custo algum (inclusive um modelo mais recente, uma vez que não tinham em estoque o modelo danificado). Talvez quisessem com isso “encantar o cliente”? Pois já era tarde demais.
Pensei comigo mesmo: mas por que não adotaram, logo de cara, esse tratamento, já no início do meu contato? Quanto desgaste com o cliente não evitariam? A resposta para essa pergunta não revela, digamos assim, uma gestão das mais éticas: porque, infelizmente, em muitas empresas isso é uma “estratégia” – muito ruim! – de gestão.
Em uma empresa que visitei recentemente, cheguei a conhecer de perto o “departamento de monitoramento do Reclame Aqui”. É verdade, as maiores empresas têm isso, o que já deveria ser um sinal de alerta sobre a (in)capacidade da companhia em resolver internamente seus problemas antes que eles cheguem aos clientes.
Esses departamentos funcionam assim: No processo “normal” de atendimento, o cliente que apresenta um problema é naturalmente “barrado” pelos call centers de plantão, cuja missão é funcionar como um “dique”: protelar a coisa se possível até o cliente desistir.
Mas se o cliente, como eu, mostra-se teimoso e não desiste dos seus direitos como consumidor e, pior ainda, ameaça ou efetivamente vai para as mídias sociais botar a boca no trombone, aí esse cliente “diferenciado” entra automaticamente em um outro “canal” de atendimento, cujo processamento do seu problema é muito mais rápido e no qual a empresa mostra-se, finalmente, aberta a ouvir o que o consumidor tem a dizer e a resolver o seu problema.
Ou seja, trata-se de uma gestão cuja mentalidade que se revela é absurda: só ouviremos realmente o problema do cliente se for “na marra”. Se o consumidor for “bonzinho”, “passivo”… ficará na fila e provavelmente não vai ter sua reclamação resolvida.
Que gestão é essa? É uma gestão antiética que trabalha com a possibilidade de iludir o cliente, de fazê-lo desistir. Trata-se da típica gestão “apagadora de incêndios”, cujos problemas não são resolvidos em suas causas raízes, para que nunca mais voltem, mas que fica sempre trabalhando nos sintomas, quando já são grandes e podem causar um dano maior à imagem da empresa.
E qual é o resultado de empresas que adotam essa política? Será que reduzem custos com essas práticas mesquinhas? Será que encantam, surpreendem (positivamente) e fidelizam os clientes? Claro que não.
Vejam meu caso: recebi o relógio novo (a empresa acabou assumindo o custo da troca), mas fiquei desencantado com o atendimento da companhia. Embora ainda ache que o produto dela é bom, nas próximas vezes procurarei outra marca e certamente não indicarei para meus amigos. É um duplo tiro no pé. Não seria muito melhor ter um foco no cliente desde a primeira vez? Certamente ela prosperaria muito mais.
Sua empresa tem um “departamento de Reclame Aqui”? Hummm…
Fonte: Época Negócios - 11/04/2018