Foi durante o pós-guerra, nos anos 50, quando perto de um terço dos executivos americanos morria nos escritórios, muitos fulminados por um ataque cardíaco, que surgiu o que conhecemos por RH moderno. De responsável por folhas de pagamento, a área de recursos humanos ganhou status e foi avançando cada vez mais sobre a rotina dos profissionais. Não havia então muita preocupação em melhorar o bem-estar das pessoas. O objetivo ali era mais claro e urgente: formar “líderes” para substituir aqueles que estavam tombando sobre as mesas.
Com esse histórico, não é de estranhar que a área de recursos humanos e suas políticas com nomes em inglês – job rotation, feedback 360, coaching… – seja vista com certo desdém, vez ou outra, por turmas de todos os escalões. Mais de meio século se passou, mas a cartilha que dita as regras de como gerir pessoas segue basicamente a mesma, acrescida de meia dúzia de benefícios que variam de acordo com as leis trabalhistas de cada região.
Em um artigo publicado na Harvard Business Review sob o título Por que amamos odiar o RH, o professor de administração da Universidade da Pensilvânia Peter Cappelli apontou alguns motivos que fizeram a área de recursos humanos perder a credibilidade nos últimos anos. Um deles é meramente comportamental: “Ninguém gosta de pessoas ditando regras sobre como devemos agir; e gostamos menos ainda quando alguém sugere que é preciso mudar a forma de nos comportar. Com maior ou menor eficiência, é justamente isso que o RH faz”, afirma Capelli em seu diagnóstico, de dois anos atrás. Especialista em relações do trabalho, ele ressalta os desafios da área: “Com verbas cada vez menores e pressão maior por bons resultados, fica mesmo difícil aos profissionais de RH separar aquilo que é útil entre as práticas de gestão daquilo que não passa de bobagem corporativa”.
Daria para listar uma infinidade de clichês repetidos aos funcionários com o objetivo de fazê-los acreditar que estão “trabalhando melhor e mais felizes” quando, na verdade, estão “trabalhando mais”. E outra de eufemismos para aliviar a sensação de que, no final das contas, a vida de todos no escritório ficará muito pior. Mas a intenção desta reportagem é outra.
Há um grupo de empresas que já formam o que se pode chamar de batalhão de elite das boas práticas de recursos humanos. Cada uma à sua maneira, elas estão reinventando regras, mudando a forma de contratar profissionais e oferecendo benefícios que vão além daquilo que, por lei, ainda é direito do trabalhador. No geral, elas usam a tecnologia para colher e analisar dados dos funcionários e, com base nas informações, definir as práticas que melhor atendam às necessidades daqueles que já trabalham por lá ou têm potencial para serem contratados. Já são realidade, por exemplo, folgas remuneradas para cuidar de parentes ou amigos com problemas de saúde, licença-paternidade de até quatro meses e jornadas realmente flexíveis, com chefes treinados para não fazer cara feia quando alguém da equipe decide trabalhar de casa ou do café da esquina. “As empresas sempre cobraram que seus funcionários estivessem ligados às mudanças e prontos para entregar o melhor”, diz Marcos Vaccari, há 26 anos na área de gestão de pessoas da PespsiCo no Brasil, 18 deles como vice-presidente de RH. “Então, nada mais natural que as políticas de recursos humanos também se transformem. Se pedimos mais, é preciso que também ofereçamos mais.”
Pode causar estranheza que em um momento de economia em recessão e em um país com taxa de desemprego de quase 13%, uma das maiores de sua história, tantas empresas estejam empenhadas em aprimorar suas técnicas para atrair e reter profissionais. É também curioso que este movimento esteja ganhando força justamente num momento em que vários direitos trabalhistas estejam sendo “desregulamentados” – e que muitos deles possam desaparecer com a sanção presidencial da nova CLT, prevista para acontecer neste mês. A explicação para o fenômeno pode ser alcançada com a ajuda do pensamento do sociólogo Ricardo Antunes, um dos mais importantes pesquisadores brasileiros em legislação e relações trabalhistas. Para ele, há quem entenda o trabalho como custo, algo sempre passível de cortes. Mas ainda há quem veja o trabalho como algo de valor. Para esse grupo, seguindo a reflexão de Antunes, o trabalhador sempre será entendido como um ativo que, em momentos de crise e escassez, pode e deve ser valorizado, independentemente do que diga a lei.
É mais ou menos essa lógica que vem sendo seguida pelas companhias pinçadas aqui. Não que elas sejam perfeitas ou generosas com seus profissionais. Estão apenas cultivando algo que compreendem ser fundamental: a força de trabalho – e a rentabilidade e a sustentabilidade de seus negócios em mercados cada vez mais competitivos.
Em pesquisa realizada no final do ano passado, a ADP, líder global em gestão de capital humano, identificou que um dos principais receios dos empregadores é não encontrar mão de obra qualificada para suas equipes. Dos 500 entrevistados em grandes companhias do Brasil e de outros 13 países, incluídos China, Estados Unidos e Alemanha, 76% acreditam que encontrar trabalhadores qualificados se tornará cada vez mais difícil, e 69% apontam que reter esses profissionais vai ficar cada vez mais caro. Em um cenário em que os ciclos dos produtos estão mais curtos, as demandas dos consumidores mudam rapidamente e surgem outras formas de desenvolver atividades em função das novas tecnologias, as empresas precisam de gente com diferentes habilidades e, ao mesmo tempo, com um perfil capaz de caminhar bem diante das transformações. É o que no jargão do RH convencionou-se chamar de “gente relevante para o negócio”, os tais “talentos”.
É para chegar até esse profissional que a PepsiCo de Vaccari está fazendo seu maior investimento no país em um programa de seleção de pessoas. Lançado neste mês, o Seja Único reúne em uma única plataforma todas as regras e ferramentas para a candidatura às vagas da empresa destinadas a recém-formados. Gerido por uma startup de tecnologia, o programa permite a realização de três das cinco etapas da seleção de forma virtual – as entrevistas são feitas por meio de chats e com seleção de materiais enviados por Instagram, por exemplo. Graças ao programa será possível finalizar um recrutamento em apenas 30 dias, ante os seis meses de uma seleção convencional. Se a ideia era chamar a atenção de jovens, funcionou. Em poucos dias, foram 3,9 mil inscrições para pouco mais de 50 vagas. “Os processos anteriores eram muito maçantes e essa geração não tem tempo a perder”, diz Vaccari.
A mudança na empresa não está acontecendo apenas na forma, mas também na lógica da contratação. Vaccari está seguindo uma das principais tendências para o RH, a “consumerização”. É uma palavra feia com significado simples – tratar candidatos e trabalhadores com todo o cuidado dispensado ao consumidor. Amparado por uma série de pesquisas e quase uma dezena de consultorias, Vaccari vai fundo nos hábitos dos profissionais de diferentes perfis para desenhar uma política de atração e retenção bastante própria. “O objetivo é chegar a uma equipe tão diversa como o público que consome os produtos da marca”, diz ele.
Um de seus xodós no momento é o Ready to Return (ou Pronto para Voltar), que prevê a oferta de vagas com exclusividade a pessoas que, por motivos diversos, ficaram de dois a cinco anos afastadas do mercado de trabalho. Previsto para ser lançado até julho de 2018, o programa deve contemplar sobretudo mulheres que deixaram suas carreiras para cuidar dos filhos. “Percebemos que havia profissionais extremamente qualificadas que não procuravam emprego ou porque não acreditavam que podiam voltar ao trabalho, por sentirem-se desatualizadas, ou porque já haviam encontrado muitas portas fechadas em várias organizações”, diz Vaccari. “Se é para redesenhar as políticas de RH, temos de ser pioneiros em várias frentes.” Detalhes do programa ainda estão sendo definidos, mas a ideia é oferecer inicialmente vagas temporárias em gerências ou diretorias para projetos pontuais.
No ano passado, a PepsiCo já tinha dado um passo importante na busca por uma maior diversificação em seus quadros, permitindo a trainees entrarem na empresa em cargos de liderança. Eram dez vagas para diferentes áreas abertas a pessoas com qualquer diploma de graduação. A única exigência era que estivesse cursando ou já tivesse concluído uma pós-graduação. Formada em Direito, com mais de dez anos de experiência em fusões e aquisições, Carolina Pett, de 30 anos, tinha um bom emprego e um ótimo salário em uma multinacional especializada em negociação de commodities. Mas estava louca para mudar de área. “Vi um vídeo do Vaccari no LinkedIn, falando sobre a oportunidade. Pareceu o momento ideal para tentar algo que eu queria há muito tempo”, diz Carolina. Em uma disputa acirradíssima com milhares de candidatos, ela ganhou a vaga e hoje é responsável por repensar a distribuição dos produtos Mabel, liderando outros três profissionais. “Graças ao programa, pude recomeçar minha carreira em uma área nova, sem perder renda e com toda a liberdade de aprender, já que formalmente eu sou uma trainee, com acesso a mentores e cursos de formação.”
Histórias como a de Carolina devem se tornar cada vez mais comuns. Hoje, os jovens de 20 a 32 anos já formam boa parte da força de trabalho. Para eles, o desafio intelectual e a possibilidade de crescer na carreira são os anseios mais importantes, mesmo que para isso seja preciso mudar muitas vezes de emprego ou mesmo de área de atuação durante a carreira.
No início deste ano, a Sommet Education, instituição suíça que agrega duas das mais renomadas escolas na área de serviços de luxo do mundo, realizou uma ampla pesquisa com seus estudantes para entender suas perspectivas de carreiras e, sobretudo, suas preferências em relação ao tipo de empresa em que gostariam de trabalhar. A possibilidade de aprender de maneira contínua em um ambiente amigável que respeite as individualidades estava entre os itens no topo da lista. Em suas projeções, esses jovens trocarão de emprego pelo menos quatro vezes ao longo da carreira, mantendo uma prioridade: o equilíbrio entre vida pessoal e profissional.
Isso não significa que essa turma espera trabalhar pouco, mas apenas que ela tem clara consciência de que as funções irão demandar cargas extraordinárias de trabalho – e que esse tempo terá de ser obrigatoriamente recompensado quando possível. Embora o levantamento considere apenas os alunos da instituição (jovens de classe média alta de mais de cem países), trata-se de um retrato importante por definir as preferências de um grupo capaz de influenciar as próximas gerações.
Foi a percepção de que o equilíbrio entre vida pessoal e trabalho está ganhando evidência o que levou a Microsoft a redefinir algumas de suas políticas de RH. Há 18 meses, a empresa criou uma licença especial remunerada que permite aos funcionários se ausentar do trabalho por até quatro semanas por ano se precisarem cuidar de algum parente ou amigo com problemas de saúde. O profissional recebe o salário integralmente durante o período. No Brasil, o programa foi implementado em maio e já atendeu dez funcionários.
O Family Caregiver, como foi batizado, surgiu como resposta a uma demanda dos funcionários diante de uma nova realidade familiar, marcada principalmente pelo aumento da expectativa de vida e a maior participação de pais e mães na educação dos filhos. “Hoje, há uma convivência mais prolongada entre gerações. Muitos dos nossos funcionários são responsáveis pela saúde de seus pais ou parentes idosos mais próximos e queriam ter liberdade para zelar por eles quando necessário”, diz Daniela Sicoli, gerente de recursos humanos da Microsoft no Brasil. “Há também um grupo de homens que já entenderam a necessidade de dividir de fato as responsabilidades e os cuidados com os filhos e com a casa. Com a medida, nós também ajudamos a impulsionar esse movimento.”
Gerente financeiro da Microsoft em São Paulo, o economista Cesar Zanella, de 40 anos, foi um dos primeiros a usufruirem do programa na companhia. No início de julho, enquanto se preparava para o nascimento de seu terceiro filho, Zanella e a mulher, Carla, ficaram sabendo que a partir daquele mês ela precisaria ficar em repouso, para não colocar em risco sua saúde e a do bebê. Estava proibida de fazer qualquer tipo de esforço, o que a impediria de ajudar a cuidar dos outros dois filhos. “Pedi a licença na mesma hora”, relembra Zanella. “Não adiantaria eu ficar de corpo presente no escritório, mas com a cabeça lá em casa, preocupado.” Durante as duas semanas em que ficou afastado do escritório, o executivo se desdobrou para dar conta da rotina que já conhecia bem – cozinhou, deu banho nas crianças e as levou para a escola. “A diferença é que sempre dividimos essas tarefas. Com a Carla em repouso, tive de fazer tudo sozinho. Graças ao programa, pude me dedicar integralmente à minha família. Tudo correu bem e eu voltei 100% focado.”
A lógica desse tipo de política é simples. “Em uma empresa de alta tecnologia como a nossa, muitas vezes precisamos que o profissional se dedique mais ao negócio que à vida pessoal”, diz Gabriela Paiva, gerente de remuneração e benefícios da Microsoft e uma das responsáveis pelo programa. “Quando ele precisar se dedicar um pouco mais às suas próprias coisas, vamos respeitá-lo e apoiá-lo.”
Implementar medidas como essa, no entanto, não é algo simples. Mesmo nas empresas consideradas mais modernas e onde se dá importância à capacidade intelectual dos funcionários, há sempre uma resistência a ser superada. Daniela e Gabriela não tiveram problemas para pôr em prática o programa Family Caregiver no Brasil, mas anos atrás as duas sofreram um bocado para fazer valer aqui a jornada flexível de trabalho, prática difundida na Microsoft e amplamente utilizada nos Estados Unidos. “As pessoas falavam ‘ok, tem a política, mas meu gerente não gosta, meu chefe quer me ver aqui no escritório o tempo todo’”, recorda Daniela.
Para resolver o impasse, a dupla agiu com firmeza. Levou os profissionais com cargo de liderança para um retiro de fim de semana no interior de São Paulo. Lá, as duas apresentaram pesquisas mostrando que a maior reclamação dos funcionários dizia respeito à dificuldade de equilibrar vida profissional e pessoal. Em seguida, relembraram como todos ficavam no escritório muito mais horas que o habitual sempre que era preciso. Depois, destacaram o tempo perdido no trânsito em uma cidade como São Paulo. “Não faz sentido alguém com reuniões externas em lugares próximos à casa no início e no fim do dia voltar para o escritório somente para marcar presença”, diz Gabriela.
Para concluir o processo, estabeleceu-se que, por um determinado período, as pessoas eram obrigadas a trabalhar de casa um dia por semana até que a flexibilidade de horários e locais passasse a funcionar de forma mais orgânica. Uma campanha utilizando os canais de comunicação interna da empresa foi lançada, incentivando os funcionários a postar uma foto de si mesmo trabalhando em seu dia de home office. Funcionou e já no primeiro ano a partir da adesão massiva ao programa, em 2011, houve um aumento de 25 pontos percentuais no índice de satisfação dos funcionários.
Para fazer valer na prática as políticas colocadas no papel, o envolvimento das chefias é sempre crucial. Nesse sentido, poucas ações foram tão eficientes como a de Mark Zuckerberg, cofundador e CEO do Facebook. A empresa concede licença-paternidade de quatro meses há bastante tempo em todos os países em que mantém operação, mas o benefício só passou a ser mais procurado pelos funcionários a partir de 2015, quando o patrão Zuckerberg divulgou em seu perfil que ficaria dois meses ausente para curtir a chegada da primeira filha, Max. Em agosto deste ano, ele repetiu a dose no nascimento de sua segunda filha, August.
Vice-presidente do Facebook e Instagram para a América Latina, Diego Dzodan foi dos que seguiram o exemplo do chefe para aproveitar mais de perto o nascimento do filho, Pietro. “Eu não tinha a dimensão do quão prazeroso e importante era poder estar totalmente à disposição de um filho”, ressalta Dzodan. “Com a licença, além de estar em casa com minha família, eu tive tempo para ler e aprender sobre cuidados e educação de uma criança. Foi uma experiência incrível, que, infelizmente, eu não pude ter com minhas filhas mais velhas.”
Por lei, no Brasil, os homens têm direito a cinco dias de licença-paternidade – período prorrogável para 15 dias se o empregador for cadastrado no Programa Empresa Cidadã, de 2008. Nesse caso, a companhia paga pelos dias que excedem a licença mínima, ganhando ressarcimento posterior por meio de benefícios fiscais. A mesma regra vale para quem concede licença-maternidade de seis meses – apenas quatro são obrigatórios.
Dzodan retornou ao escritório do Facebook em São Paulo no início de outubro, ainda com alguns dias de sua licença para tirar. “Será ótimo, porque eu realmente tenho vontade de voltar para casa só para trocar as fraldas do meu filho”, diz.
A política do Facebook é avançada em muitos aspectos. Ao oferecer ao pai o mesmo período de licença concedido à mãe, as empresas estão fazendo um bem danado também às mulheres, porque isso fortalece a ideia de que todos têm exatamente a mesma responsabilidade em relação a um filho. Todos os benefícios e programas mencionados nesta reportagem são válidos também para casais homoafetivos e em casos de adoção, evidentemente.
“Não estamos fazendo favor”, diz Weider Campos, líder da área de recursos humanos do Facebook no Brasil. “Todos os benefícios são pensados para que as pessoas se sintam melhores e, com isso, voltem ao trabalho mais produtivas.”
Fonte: Época Negócios - 09/04/2018