Se até ontem, quando pensava em sua carreira, você deixava a saúde de fora do currículo, talvez seja hora de reconsiderar. Nos últimos anos, as empresas aumentaram significativamente os investimentos em programas de bem-estar e saúde e passaram a monitorar dados sobre os hábitos de vida dos funcionários.
Hoje, elas conseguem saber quantas calorias você ingeriu, se bebeu o volume de água suficiente, se dormiu bem, se anda estressado ou se vai regularmente à academia. Uma companhia atenta observa que você está prestes a sair da obesidade grau 2 para se tornar mórbido, projeta sua propensão a desenvolver diabetes e mensura seu risco cardíaco no curto e no médio prazo. É provável que a empresa também saiba, melhor do que você, se há perigo de internação ou cirurgia eletiva no próximo ano.
A ficha pode não ter caído ainda, mas o tempo em que a saúde era uma questão privada — e não do empregador — acabou. Uma pesquisa da consultoria Mercer Marsh Benefícios concluiu, depois de avaliar 58 empresas e mais de 260 000 profissionais brasileiros, que 95% das corporações já acompanham a utilização da assistência médica, 79% supervisionam a participação nos programas de saúde e bem-estar e 64% vigiam de perto o absentismo.
O estudo mostrou ainda que 50% das participantes medem indicadores de risco dos colaboradores, 45% avaliam o nível de satisfação dos trabalhadores e 28% inspecionam a condição mental deles. A razão para o Big Brother? O custo-saúde. Há menos de uma década ele girava em torno de 3% do total de despesas de uma companhia. Hoje, chega a 14% — tornando-se, para a maioria, a segunda maior despesa da folha. Paralelamente, a inflação médica bateu os 18%, ante 3% do restante da economia. "As despesas cresceram tanto que a questão caiu no colo do CEO e do CFO, e o tema ganhou enorme relevância", afirma Enrico De Vettori, sócio líder da área de saúde da consultoria Deloitte, em São Paulo.
Diante do aumento exponencial dos gastos, há empresas fazendo downgrade dos planos oferecidos aos funcionários e outras dividindo a conta com o empregado e seus dependentes por meio de coparticipações. Mas há um terceiro grupo que tem preferido enfrentar os altos gastos com saúde usando o health analytics, ferramenta que cruza dados sobre a vida dos colaboradores, captados de diferentes fontes, para fazer projeções sobre seu estado físico e emocional.
Embora ainda incipiente, a utilização de algoritmos de saúde é uma tendência — e deverá crescer nos próximos anos. "As métricas possibilitam mapear quem são os gastadores e criar ações de engajamento para eles. No caso de um paciente com doença crônica, é possível monitorar se está tomando medicação, incentivá-lo a ir ao médico e evitar que se desestabilize, sobrecarregando o sistema", diz Enrico.
Poucos anos atrás, ter políticas de saúde organizacional baseadas em inteligência artificial era algo raro. Construíam-se estratégias de saúde com base no senso comum. Casos como o de uma grande empresa que investiu 3 milhões de reais num programa antitabagismo e, depois, descobriu ter apenas 160 fumantes entre milhares de empregados tornaram-se clássicos.
O dinheiro era literalmente jogado fora. "Hoje, ao convergir informações de diversas fontes, direciona-se melhor os investimentos", diz Ricardo Lobão, CEO da UIB Benefícios, consultoria de gestão de saúde que trabalha no modelo pós-pago, em que a organização só paga quando o funcionário usa o convênio. O modelo, utilizado por 14% das companhias brasileiras, recorre ao monitoramento em tempo real de usuários e aos algoritmos para prever custos.
Para exemplificar como isso funciona, Ricardo cita o caso da mulher de um empregado que foi ao médico solicitar diagnóstico para redução das mamas. Ao ter o procedimento negado, ela entrou no radar da consultoria. Uma simulação concluiu que, se não fizesse a cirurgia, em um ano ela daria entrada no sistema para colocar pinos na coluna, o que custaria 250 000 reais. "A metrificação provou que valia a pena arcar com o tratamento. O custo foi de 32 000 reais. A companhia economizou e a paciente se curou. Foi bom para ambos", diz o consultor.
Tecnologia em alta
À medida que a tecnologia e o big data avançam, a colcha de retalhos de dados de saúde vai se costurando. Hoje, as informações vêm de todos os lados: de operadoras de saúde, de startups (como o Gympass, que oferece às empresas dados sobre a frequência de seus empregados à academia), de programas de bem-estar das próprias organizações e até de dispositivos como relógios e pulseiras inteligentes — no futuro, devem chegar também via chips implantados na pele com sensores.
Entre as ferramentas já disponíveis estão os aplicativos de gestão e monitoramento da saúde, usados por 14% das companhias em operação no Brasil. "O número é baixo, mas tende a crescer. Nos Estados Unidos, uma referência na área, já são 39%", diz Helder Valério, gerente de gestão e promoção de saúde da Mercer Marsh¬ Benefícios, em São Paulo.
A porta de entrada de todo bom aplicativo é um questionário detalhado de saúde, uma espécie de anamnese digital que ajuda a organização a detectar ameaças a que sua população está exposta.
Na Bridgestone, maior fabricante de pneus do mundo, dois aplicativos foram implementados neste ano: um para o funcionário fazer a gestão de sua saúde em tempo real e outro voltado para as grávidas, com algoritmos clínicos que monitoram a saúde tanto da mãe quanto a do bebê. "Entendemos que não adiantaria economizar mudando para um plano de saúde inferior. São as pessoas que fazem o negócio acontecer e, se elas não estiverem bem, a empresa não andará", diz Claudia Teixeira, diretora de relações trabalhistas da Bridgestone, que tem sede em Santo André, no ABC paulista. Os primeiros indicadores serão mensurados em 2018.
Quando o empregador passa a monitorar seu estado físico (e mental), é preciso fazer a si mesmo perguntas do tipo: o que eu ganho ao compartilhar meus dados? Essa informação pode se voltar contra mim no futuro?
Foi a certeza de que não será prejudicada que fez a arquiteta Amanda Frezzato, de 41 anos, baixar o aplicativo da Bridgestone durante a gestação. Como é portadora de esclerose múltipla e sua gravidez era de risco, a ferramenta trouxe comodidades. "Eu tirava dúvidas, era alertada sobre medicamentos e interagia via vídeo ou chat com uma equipe especializada", diz a gerente de desenvolvimento de lojas da Bridgestone. Embora tenha dado à luz três meses atrás, Amanda segue logada. "O aplicativo gera relatórios e sei que a empresa pode acessar os dados, mas isso não me preocupa. Desde que descobri a doença, há nove anos, nunca fui discriminada — ao contrário, fui promovida."
Outra gigante que vem investindo em saúde via mobile é a francesa Ticket, que acaba de lançar o aplicativo Ticket Fit. Disponível para pessoas físicas e corporações, o produto monitora hábitos: calcula o consumo diário de calorias, computa o volume de exercícios praticados, fornece conteúdo personalizado e possibilita criar games. "É possível saber se as pessoas estão se exercitando ou se o IMC da população está bom. São indicadores práticos, em tempo real, que ajudam o RH a fazer a gestão da saúde", diz Marília Rocca, diretora-geral da Ticket no Brasil. De acordo com a executiva, são 100 000 usuários ativos em dois meses, e a ideia é expandir o aplicativo para os 42 países em que a empresa atua.
Estimativas de mercado apontam que, de 2015 para cá, houve um aumento de 21% no investimento anual em ações de saúde e bem-estar por funcionário. O aporte de dinheiro na área não acontece sem razão. O universo corporativo se deu conta de que proporcionar qualidade de vida às equipes melhora os resultados do negócio. Estudos mostram que um indivíduo saudável falta menos e veste mais a camisa da empresa — no Reino Unido, uma pesquisa provou que saúde e bem-estar aumentam a produtividade em até 12%.
A analista financeira Daniela Cordeiro de Carvalho, de 34 anos, de São Paulo, comprova a estatística. Com 1,60 metro de altura e 78 quilos, ela tentava emagrecer e se animou quando sua companhia, o Mercado Eletrônico, criou, em outubro, um game para incentivar a perda de peso pelos empregados. "Eliminei quase 5 quilos. Só por isso eu já acordo animada para o trabalho", diz. Dos 200 funcionários da companhia, que desenvolve soluções comerciais B2B, 87 aderiram à disputa. A cada dez dias, eles passam por pesagem e avaliação. Há um grupo no WhatsApp para trocar incentivos. O prêmio, simbólico, será uma bicicleta.
Adriana Oliveira, gerente de RH do Mercado Eletrônico, diz que a ação foi criada depois de a base de dados apontar que havia muita gente acima do peso. A companhia também passou a conceder passes para academia como benefício e contratou uma coach de bem-estar para orientar colaboradores. "Identificamos que precisávamos investir no tema saúde de modo mais arrojado. Vamos medir os indicadores só no final do programa, mas já sinto diferença no engajamento e, provavelmente, abriremos uma segunda temporada", afirma.
Reflexo na liderança
A liderança será uma das principais afetadas por essa mudança de mentalidade no ambiente corporativo. Além de coordenar metas e buscar o resultado do negócio, fará parte do escopo do bom líder promover a qualidade de vida do time. Os chefes serão cada vez mais cobrados a dar bons exemplos: ficar no trabalho até altas horas pega mal; ser sedentário e comer besteira, idem. "Há uma tendência global, puxada pela geração Y, de buscar um estilo de vida saudável. Sem engajar gestores, é difícil criar essa cultura", diz Isis Borge, gerente de recrutamento da Robert Half, de São Paulo.
Na Bosch, fabricante alemã de equipamentos eletrônicos com sede em Campinas, no interior paulista, a onda atingiu os executivos. No ano passado, durante um encontro de líderes, um grupo de 75 gerentes e diretores lançou voluntariamente uma competição entre times batizada de Health Transformation, para mudar sua atitude em relação à qualidade de vida.
Com pulseiras inteligentes conectadas ao celular, passaram a ter o número de passos e a comida ingerida registrados diariamente, para verificar quem percorria a maior distância e perdia mais quilos. Juntos, em três meses, os gestores da Bosch queimaram 5 milhões de calorias e deram 38 milhões de passos (o suficiente para percorrer a circunferência da Lua três vezes). Os vencedores levaram um vale de 1 000 reais para fazer compras numa rede de lojas esportivas.
A Bosch conta hoje com um comitê multidisciplinar para fazer o acompanhamento mensal dos indicadores de saúde, promove uma maratona de corrida anual e tem feira livre de frutas e legumes toda sexta-feira na sede. "Saúde e bem-estar se tornaram ferramentas de atração e retenção de talentos", diz Fernando Tourinho, diretor de RH. De acordo com ele, só não há um aplicativo (ainda) por questões éticas. "Não está claro para nós como tratar a confidencialidade e a segurança da informação."
Questão ética
Garantir que os dados sobre o estado de saúde das pessoas se mantenham nas mãos certas — e não acabem virando motivo de discriminação — é um ponto sensível nessa nova abordagem da saúde no ambiente corporativo.
Apesar de a lei exigir que prontuários sejam avaliados apenas por médicos do trabalho (sem envolvimento do RH), não existe garantia de como esse enorme volume de dados vem sendo tratado. Em artigo escrito em 2016 para a publicação americana Journal of Law, Medicine and Ethics (da Associação Americana de Direito, Medicina e Ética), Ifeoma Ajunwa, professora na Cornell University, nos Estados Unidos, e autora do livro The Quantified Worker ("O empregado quantificado", sem tradução para o português), diz que os dados podem colocar a privacidade (e o emprego) em risco. Numa de suas pesquisas, ela descobriu que bancos de dados contendo informações de saúde são um alvo atraente para hackers — interessados em vender ou exigir resgate pelo sequestro de informações sensíveis.
Não bastasse isso, na maioria dos países, a legislação não é específica sobre os limites para o uso de novas tecnologias no ambiente de trabalho, o que deixa o colaborador vulnerável. Deli Matsuo, ex-diretor de recursos humanos para a América Latina do Google e fundador da Appus, empresa pioneira no Brasil em people analytics, diz não acreditar que uma companhia idônea vá analisar a saúde pensando em demitir. "O intuito de quem nos procura é garantir a assertividade das ações, para que funcionários fiquem mais saudáveis e gastem menos", diz.
Em janeiro de 2018, a Sharecare, multinacional americana especializada na digitalização de dados de saúde, trará para o mercado brasileiro um aplicativo que promete revolucionar o mundo corporativo. A plataforma, que consumiu meio bilhão de dólares em investimentos e recebeu aportes de gente graúda como a apresentadora americana Oprah Winfrey, foi lançada nos Estados Unidos no início deste ano.
Além de integrar todo tipo de fonte de informação, de prontuários médicos a relógios inteligentes, o aplicativo tem reconhecimento de padrões fractais na voz (quando a pessoa fala ao telefone, o sistema mede o nível de emoção e de estresse) e métricas capazes de mensurar a idade real e a cronológica, bem como o grau de salubridade de cada dia do usuário. Chamada pela Sharecare de Green Day, a ferramenta possui um coraçãozinho que vai sendo preenchido de verde conforme o usuário abastece o aplicativo com informações. Se tomou pouca água, dormiu mal e não fez exercícios, o coração não fica verde.
Ao combinar esses fatores, a tecnologia também pode prever, por meio de inteligência artificial, se a pessoa terá um evento no pronto-socorro. "O Green Day ajuda a 'tangilibizar' a saúde e pode ser usado pelas empresas como nos programas de milhas", diz Nicolas Toth Jr., CEO da Health¬ways, atual braço da Sharecare no Brasil. Nos Estados Unidos, já há companhias trocando Green Day por reajustes menores no plano de saúde.
Questionado sobre o perigo de aderir a uma plataforma que agrega tantos indicadores, Nicolas diz que o risco de sequestro de dados é o mesmo de entrar num avião e cair. Ou seja, existe, mas é remoto. "Num futuro próximo, dados serão captados pela geladeira, pelo carro, pelo chuveiro de casa. Haverá um número infindável de informação pessoal trafegando em todo tipo de lugar. Caberá a toda empresa séria fortalecer sua segurança digital", afirma.
Diferencial competitivo
Discussões éticas à parte, uma coisa é certa: não deve demorar muito para que a saúde se torne um diferencial competitivo declarado no trabalho. "Mesmo de forma velada, é possível notar uma valorização de candidatos com hábitos saudáveis. Não é interessante nem ético discriminar alguém por não fazer esporte ou se alimentar mal. Mas é fato que companhias vêm observando com mais atenção esses aspectos", diz Jorge Kraljevic, sócio-fundador da consultoria de recrutamento Signium, de São Paulo.
Especialistas admitem que já conta pontos demonstrar preocupação com a qualidade de vida nas entrevistas de emprego. Citar que participa de grupos de corrida, por exemplo, no momento do quebra-gelo, em que se fala da vida pessoal, é uma boa estratégia. O mundo corporativo adora traçar paralelos com o esporte e é praxe inferir que, se a pessoa tem uma alimentação regrada e faz atividade física regularmente, possui capacidade de planejamento, foco e resiliência.
Os talentos, por sua vez, também ficaram mais exigentes. Plano de academia gratuito, flexibilidade de horário, massagem e frutas à tarde contam até mais do que um salário alto na hora da escolha por um empregador. A via, portanto, é de mão dupla. Uma boa notícia, já que a combinação entre companhias atentas e funcionários conscientes reduz os custos com saúde, melhora os resultados e favorece toda a cadeia, numa relação de ganha-ganha.
Fonte: Exame - 12/01/2018