Como a qualidade da água afeta sua cerveja: perguntas e respostas
Encerrando a série ‘Água’
Henrique Boaventura e Gabriela Lando retornam com um último episódio da série Água, dedicada a esse que é o elemento mais subestimado – mas quiçá o mais importante – da cerveja.
Depois dos episódios #263 (fundamentos), #267 (íons, pH e ajustes) e #271 (perfis históricos e modificações), este #275 é especial, voltado exclusivamente para o esclarecimento de dúvidas dos ouvintes sobre o papel da água na produção de cervejas artesanais.
A água representa até 95% da composição de uma cerveja e influencia desde o sabor final até a eficiência da fermentação. Passados os conceitos teóricos, procedimentos práticos e as características e os estilos históricos de cerveja diretamente resultantes de perfis de águas em seus locais de origem, agora é hora de responder às principais perguntas da comunidade cervejeira.
Não perca o encerramento com chave de ouro dessa série fundamental, que conta com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis!
Tipos de água purificada e suas aplicações na cervejaria
Água destilada
Produzida por destilação, remove praticamente todos os sais minerais, microorganismos e compostos orgânicos. É considerada pura, mas pode conter gases dissolvidos. Tem desperdício mínimo de água no processo, mas não é comum para brassagens por não conter nenhum mineral.
Água desmineralizada (ou deionizada)
Obtida por resinas de troca iônica, remove cálcio, magnésio, sódio, cloreto, sulfato e outros íons. Pode conter alguma matéria orgânica residual, dependendo da filtragem. Sua pureza pode ser comprometida sem dupla filtragem.
Água de osmose reversa
Processo com membranas semipermeáveis que retém praticamente tudo exceto as moléculas de água. É o método mais eficaz para obter água “zerada” de íons e contaminantes. Entretanto, pode desperdiçar até 4–5 litros para cada litro purificado. Ideal para quem deseja montar um perfil de água a partir do zero.
Comparativo de desperdício
- Destilada: mínimo desperdício (resíduo no balão)
- Deionizada: moderado
- Osmose reversa: alto desperdício (até 80%)
Filtros e suas funções: carvão ativado x troca iônica
Filtros de carvão ativado são fundamentais para remoção de cloro e cloramina. Já os de troca iônica trocam íons indesejados por outros, como cálcio por sódio. São tecnologias complementares e não substitutas uma da outra.
Importante: carvão ativado não remove minerais; troca iônica não remove cloro. Cada um tem uma função específica.
Quando e como analisar sua água cervejeira
Frequência recomendada
Mudanças sazonais afetam o perfil da água, por isso o ideal é fazer análises a cada estação. Para cervejeiros caseiros, duas vezes por ano é suficiente.
Onde realizar análises confiáveis
- Lamas Bioshop (com foco no perfil cervejeiro)
- Estações de tratamento estaduais (DMAE, Corsan, etc.)
- Laboratórios comerciais especializados
As análises devem incluir íons como Ca²⁺, Mg²⁺, HCO₃⁻, Cl⁻, SO₄²⁻ e Na⁺. A Lamas oferece pacotes voltados para cervejeiros, com desconto para ouvintes do Brassagem Forte.
Problemas com água contaminada: excesso de ferro e manganês
Filtros de 3 ou 4 estágios (PP + carvão ativado) só removem partículas visíveis. Metais dissolvidos exigem filtros de troca iônica ou alternativas químicas.
Solução com ácido fosfórico
- Adicione ácido até pH 5,5–5,7
- Resfrie e decante por 24h
- Separe sobrenadante com cuidado
- Método descrito no livro “Água” de John Palmer
Cuidados com água de poço
Exigências legais
Segundo a Portaria 888/2021 do Ministério da Saúde, águas de poços devem ser analisadas semestralmente para parâmetros físicos, químicos e microbiológicos.
Poços rasos vs. profundos
Poços rasos estão mais expostos à contaminação (cemitérios, fossas). Poços profundos têm água mais estável, mas ainda exigem controle e tratamento.
Calibração correta do pH-metro
- Utilize sempre duas soluções tampão (pH 7 e pH 4)
- Não use solução vencida ou contaminada
- Armazene o eletrodo em solução de KCl 3M
- Calcule o slope se o aparelho fornecer leitura em mV
- Evite limpar com papel ou armazenar a seco
Erro comum: medir pH da água sem malte. Sempre medir pH da mostura após 5 a 10 minutos, com amostra resfriada a 20–25°C.
Como a composição da água afeta o pH da mostura
Resistência à acidificação
Águas com alta concentração de bicarbonato e pouco cálcio exigem mais ácido para reduzir o pH. Exemplo: bicarbonato 125 ppm, cálcio 10 ppm → alta alcalinidade residual.
Maltes escuros ajudam a acidificar
Estilos como Porter e Stout se beneficiam de águas alcalinas. Os maltes escuros reduzem naturalmente o pH, compensando o excesso de bicarbonato.
Como corrigir pH ácido em mosturas escuras
Uso de bicarbonato de sódio
Aumenta o pH e adiciona sódio. Limite seguro: 50–75 ppm. Acima de 150 ppm há risco sensorial e problemas na fermentação. Cada 1 g/L adiciona 726 ppm de bicarbonato e 274 ppm de sódio.
Evite o uso de carbonato de cálcio 
Pouco solúvel, ineficaz para ajustar pH em meio líquido. Preferível utilizar bicarbonato, com monitoramento dos níveis de sódio.
Quando adicionar ácido: antes ou depois do malte?
Sempre depois. Ajustar o pH da água antes de arriar o malte pode causar perda de atividade enzimática. O ideal é esperar 5 a 10 minutos após início da mostura.
Redução de alcalinidade por fervura
Método
- Ferva a água por 15 minutos
- Mexa ou aerar
- Decante após esfriar
- Separa o sobrenadante
Funciona bem para águas com bicarbonato e cálcio acima de 60 ppm. Ineficiente para magnésio e outros íons.
Mitos e verdades sobre sais
Cloreto de cálcio causa clorofenol?
Não. Clorofenol é causado por cloro livre ou cloraminas. O cloreto é um íon inofensivo, importante para corpo e maciez.
Excesso de cloreto afeta a carbonatação?
Não diretamente. O efeito é sensorial: o perfil “aveludado” da água rica em cloreto pode mascarar a sensação de gás.
Ácido ascórbico para remover cloro: cuidados
1 g de ácido ascórbico remove cloro de ~58 L de água com 5 ppm. Excesso pode reduzir o pH e afetar enzimas. Nunca use pastilhas de vitamina C — utilize ácido puro, grau alimentício ou analítico.
Cloreto de cálcio: anidro vs. dihidratado
Beersmith assume CaCl2 anidro. Se usar o dihidratado, aplique o fator de correção:
- 1 g anidro ≈ 1,32 g de dihidratado
- Massa molar anidro: 110 g/mol
- Massa molar dihidratado: 147 g/mol
Lembre-se que o CaCl2 é higroscópico — sua massa pode variar com a umidade do ambiente.
Perda de minerais na mostura e fervura
Estudos mostram que até 88% dos íons metálicos podem ser retidos na cama de grãos. O zinco, por exemplo, deve ser adicionado no fermentador para garantir disponibilidade à levedura.
Conclusão: a espinha dorsal da sua cerveja
Como síntese, podemos dizer que este episódio defende e atesta que a água vai muito além da hidratação do mosto. É uma variável estratégica para aroma, corpo, fermentação e estabilidade da cerveja. Por isso, vale muito receber o máximo de atenção possível!
Se sua cerveja está aquém do esperado, talvez o segredo esteja não nos lúpulos, mas na torneira que jorra esse elemento abundante na produção, mas ainda um bocado negligenciado.